segunda-feira, 23 de maio de 2011

Nosso Brasil e A amiga Argentina.


O fim da Guerra do Paraguai marca nova fase nas relações entre Brasil e Argentina.
Destruída a ameaça paraguaia à ordem bipolar na bacia do Prata, os dois países retomaram tensões e rivalidades que antecederam a Tríplice Aliança. Nesse sentido, tanto Brasil quanto Argentina buscaram a articulação com os vizinhos sul-americanos para conter o rival, o que provocou alterações em certos aspectos da política externa de ambos. Com a proclamação da República em 1889, o panorama de tensão não é profundamente alterado, apesar de algumas mudanças evidenciadas na Questão de Palmas (Misiones).
O prolongamento da permanência das tropas brasileiras no Paraguai durante o Gabinete Rio Branco (1871-1875) é sinal das transformações em direção à retomada da rivalidade. Esse último marco de intervencionismo brasileiro na região platina durante o Segundo Reinado justificou-se, no âmbito das relações internacionais, pelo receio do avanço das pretensões argentinas na região do Chaco. Assim, esse acontecimento de caráter intervencionista indica a nova postura do Brasil de retraimento vigilante na política externa, preocupada principalmente com a contenção da influência argentina. Do lado argentino, a postura brasileira é vista como direcionador de uma abordagem diferente: consolidada por Bartolomé Mitre, a Argentina não adotará posição expansionista tendo em vista a reconstrução do antigo Vice-Reino do Rio da Prata, como antes, mas buscará a aproximação com os demais Estados hispânicos para conter o Brasil.
Os dois primeiros cenários desses desdobramentos foram as negociações para definição de limites e as iniciativas panamericanistas. Até então, o Império do Brasil insistira no uti possidetis e adotara postura firme de não ceder território nas negociações de limites com seus vizinhos; com o objetivo de evitar tensões que os aproximassem da Argentina unificada, o Brasil assume maior flexibilidade e diminui o ritmo, chegando até a cogitar a antes rejeitada idéia de arbitragem. Resultado disso foi a subsistência de diversas questões limítrofes até a República Velha. O Brasil também tira proveito das divergências de fronteira entre Argentina e Chile para se aproximar desse último. No âmbito panamericano, a iniciativa pende para a Argentina, que busca aliança entre os países hispanoamericanos com base na visão bolivarista. A diplomacia brasileira responde com esforços para evitar a formação de coalizão anti-brasileira. Desses dois palcos internacionais, pode-se depreender as articulações diplomáticas em torno da rivalidade das duas potências platinas.
No âmbito econômico, a modernização dos dois países no contexto periférico do capitalismo industrial do século XIX coaduna-se com a realidade do eixo geopolítico. As duas economias guardam pouca complementaridade e, se exercem o mesmo papel de fornecedoras de matérias-primas agrícolas para os mercados centrais, seus principais produtos de exportação não são concorrentes: o Brasil é exportador de café principalmente para os Estados Unidos, enquanto a Argentina exporta carne e trigo para a Europa. No entanto, observa-se, em certa medida, disputa entre os dois vizinhos pelos investimentos europeus na América do Sul, sobretudo nos setores de infraestrutura de exportação. Se essa perspectiva indicaria o recrudescimento da rivalidade, cabe ressaltar também a demanda por empréstimos dos dois: o Brasil obteve, no final do Império, empréstimo vultoso de 20 milhões de libras esterlinas; tanto Brasil quanto Argentina saem da Guerra do Paraguai bastante endividados. No sentido contrário da relação causal das tensões Brasil-Argentina, a falta de cooperação entre os dois vizinhos afastou qualquer perspectiva de negociação conjunta no momento de crise dos dois, na década de 1890, porquanto o Brasil buscou maximizar isoladamente seus ganhos com o universalismo e a política de prestígio pautada nas viagens de D. Pedro II e a Argentina concentrou-se nos benefícios auferidos da relação íntima com o Reino Unido.

A proclamação da República no Brasil provocou certos desdobramentos diferenciados na relação bilateral e na articulação em torno do retraimento vigilante brasileiro. A Argentina é o primeiro país a reconhecer o novo regime brasileiro e as divergências em relação à forma de Governo singular do Brasil no contexto americano são desfeitas. A presença do Brasil na Conferência Panamericana de Washington sinaliza mudança na política externa brasileira: da política pragmática firme do Império, passa-se ao americanismo ideológico flexível. O novo regime, instável no plano interno, procura melhorar as relações no eixo continental no plano externo.
Se novamente a política panamericanista é indício da configuração das relações Brasil-Argentina, as negociações de limites também não deixam de adquirir novos contornos. A indefinição das fronteiras na região de Missões, a oeste do estado de Santa Catarina, é razão para as negociações do chanceler Quintino Bocaiúva com a potência vizinha, o que culmina com a assinatura do Tratado de Montevidéu. Esse acordo, entretanto, não é ratificado pelo Congresso Nacional sob recomendação do próprio Bocaiúva; com efeito, cedia metade da região em litígio à Argentina, o que não satisfazia os interesses brasileiros. A recusa do Congresso brasileiro marca não somente o fortalecimento da instância parlamentar nos negócios estrangeiros, como também fornece subsídio para afirmar-se a continuidade da rivalidade entre Brasil e Argentina.
Outros eixos sinalizam mudanças além do panamericano e fronteiriço, mas subsiste a tensão em torno do sistema bipolar platino. Durante a Revolta da Armada, o presidente Floriano Peixoto procura Buenos Aires para a aquisição de uma esquadra a fim de combater os revoltosos no Rio de Janeiro, o que é negado pela Argentina. Esse ocorrido evidencia que o grau de cooperação ensaiado após a queda da Monarquia não se traduziu em desconstrução do modelo de tensão nas relações entre Brasil e Argentina: o vizinho platino não estava disposto a ceder parcela do poderio naval em prol da estabilização da República brasileira. No eixo econômico, a simultaneidade entre o Encilhamento brasileiro e a crise da Bolsa argentina não gerou concertação entre o dois, obrigando-os à aceitação de acordos draconianos com seus credores (funding loan de Campos Sales). A falta de cooperação e seus prejuízos nas negociações com credores no final do século XIX não foi lição aprendida nas crises da dívida da década de 1980.
A estabilização do regime republicano brasileiro com Campos Sales aponta novos rumos para as relações entre Brasil e Argentina, sem romper, contudo, com o paradigma da rivalidade. A resolução da Questão de Missões (Palmas) pelo arbitramento do presidente norte-americano Glover Cleveland em favor do Brasil desponta a figura do Barão de Rio Branco na diplomacia brasileira. Sob a perspectiva argentina, a conclusão desse litígio expõe a aproximação do Brasil com os Estados Unidos, que seria fortalecida por Rio Branco durante sua chancelaria e já fora prenunciada pelo Acordo Blaine-Mendonça de 1891 e pela
contratação da “esquadra de papel” por Floriano para combater a Revolta da Armada. Nesse sentido, a Questão de Palmas é prévia do recrudescimento das tensões com a Argentina nas primeiras décadas do século XX.
A partir desses argumentos, pode-se verificar a caracterização das relações entre Brasil e Argentina nas três últimas décadas do século XIX sob o eixo do retorno da rivalidade entre os dois vizinhos platinos. O fim da Guerra do Paraguai é marco da retomada das tensões no sistema bipolar do Cone Sul, em que se apresentam articulações no âmbito continental e aspectos econômicos. A proclamação da República provocou laços diretos entre os dois Estados; no entanto, a lógica regional geopolítica prevaleceu sobre obstáculos econômicos comuns e semelhanças internas. O paradigma da rivalidade é levado, após o intervalo da Tríplice Aliança, como fio condutor das relações entre os dois países até o período seguinte, no qual ganha nova dimensão.